segunda-feira, 8 de junho de 2015

terça-feira, 2 de junho de 2015

As Aventuras de Nhô Quim e Zé Caipora

Confesso que quando comprei o livro As Aventuras de Nhô Quim & Zé Caipora o fiz muito mais movido por um certo sentimento de "obrigação" (porque penso ser obrigatório um quadrinista brasileiro que se pretende "sério" ter essa obra na estante) e uma vaga curiosidade histórica. Nunca pensei que fosse realmente apreciar, me divertir e até me emocionar com uma história em quadrinhos tão antiga, feita no final do século XIX. Me enganei!

O livro foi publicado pela Editora do Senado Federal, com organização do professor Athos Eichler Cardoso. Abre com um texto com algumas notas sobre o grande desafio da restauração e montagem da obra - toda feita a partir das revistas em que as histórias foram impressas na época, muitas delas bastante desgastadas pela ação do tempo. Os textos que vem em seguida falam sobre a importância cultural de Nhô Quim e Zé Caipora na época, o contexto histórico em que foram criados e um pouco sobre a vida de Angelo Agostini.

Ler essas histórias foi uma verdadeira viagem no tempo para mim!

Começando por As Aventuras de Nhô Quim - Ou Impressões de Uma Viagem à Corte, que traz as desventuras de um rico rapaz mineiro (o Nhô Quim do título), que se apaixona por uma moça, boa, porém pobre; o pai dele acha que se envolver com moça sem dinheiro é besteira e manda o filho ir dar umas voltas na corte (o Rio de Janeiro, claro) para ver se a esquece. Uma vez lá, o rapaz se espanta o tempo todo com as "novidades" da corte e com os costumes "incompreensíveis" das pessoas que vivem lá.

Em Nhô Quim encontramos um Angelo Agostini já talentoso, mas ainda em processo de formação. Ele serve como um laboratório, tanto para o autor como para o personagem, que no fundo é um embrião para sua obra-prima: o Zé Caipora. Nhô Quim retrata o Brasil da época, com a industrialização (e consequente urbanização) que começava a ter espaço no país, deixando para trás sua cultura predominantemente rural. O personagem refletia a perplexidade do cidadão médio diante de transformações pelas quais a sociedade brasileira passava, que vinham mais rápido do que ele conseguia acompanhar.


E, claro, ela tem o mérito de ser uma das primeiras histórias em quadrinhos feitas no mundo.

O professor Athos Eischler defende que Nhô Quim seja, de fato A primeira - e penso que ele tem um argumento forte para isso. Muitos consideram Yellow Kid, de Richard Felton Outcault, a primeira HQ, criada em 1894. Nhô Quim foi publicado em 1869. A razão para considerarem Yellow Kid a primeira HQ é o uso de balões - coisa que Nhô Quim não tinha. Athos defende que a tira do Príncipe Valente, criado por Hal Foster muitas décadas depois, também não usava balões (e não usa até hoje), e sempre foi considerada uma HQ. Portanto, se Príncipe Valente é uma HQ, Nhô Quim também é.

Mas a cereja do bolo é mesmo o Zé Caipora!


Criado inicialmente como uma comédia de costumes, muito semelhante ao Nhô Quim, o personagem começa como um sujeito atrapalhado, apaixonado por Amélia (a quem ele chama de Memê); passa por toda sorte de contrariedades vergonhosas até que, por fim, arrasado e humilhado, sem conseguir conquistar o coração de Memê (assim ele pensa), resolve se retirar da cidade e ir para a fazenda de um parente no campo. Para chegar até lá, ele precisa percorrer um longo caminho por campos e florestas. Começa assim a jornada dele pela mata, pelo interior do Brasil - e dele mesmo! Nessa parte a história se torna uma série de aventura, e Zé Caipora vai aos poucos se transformando num herói. Nos contos de fadas, a floresta é sempre um símbolo da mente, do ser humano em confronto consigo mesmo. Agostini, culto como era, com certeza sabia disso e não se furtou de usar essa simbologia para construir seu personagem. Depois de passar por inúmeras aventuras e sofrimentos na mata, ao lado dos índios Inaiá e Cham-Kam, Zé Caipora sai do outro lado da selva como um novo homem, mais maduro e dono de si.

A sequência tem vários momentos memoráveis. Um dos que acho mais bonitos, tanto no texto como na arte, é logo no início da viagem do Zé, quando, após um acidente, ele é encontrado e cuidado por um grupo de tropeiros.





Há outros elementos nessa obra de Angelo Agostini que fazem dele um precursor também em outras áreas. Destaco a índia Inaiá, que acompanha Zé Caipora por toda a sequência dele na selva. Se os personagens de Agostini fossem mais conhecidos hoje em dia, ela possivelmente se tornaria um símbolo (ou um dos) da causa feminista!



Agostini criou uma personagem feminina forte, sobretudo no começo da jornada do Zé: é ela quem o tira das enrascadas em que ele se mete, salvando sua vida pelo menos duas vezes. Ela é heróica, corajosa e mais sábia que qualquer um dos personagens masculinos. Conhecedora dos caminhos e segredos das matas, é ela quem serve de guia para o Zé em sua jornada. E em nenhum momento ele se sente incomodado com isso; antes, tem um profundo respeito e admiração pela índia. Mais tarde, quando Inaiá resolve viver entre os brancos, é ela quem ensina o índio Cham-Kam (que vai junto com ela) a ler e escrever.

Os personagens negros são também tratados com respeito por Agostini (embora ainda sejam mostrados como escravos, pois evidentemente era a condição deles na época). Geralmente são mostrados como sinônimo de virtude e honra. Agostini era um abolicionista, portanto não poderíamos esperar menos dele!

O livro tem pontos negativos. O principal, e que incomoda bastante, é que a parte central das páginas traz vários textos dificílimos de ler. Originalmente a obra era publicada em revistas, por isso não havia problemas para ler os textos que ficavam no centro do publicação, onde ficava a dobra. Mas, num livro com muitas páginas, o resultado é esse:


A coisa só melhora na fase das tiras em que Agostini resolveu fazê-las ocupando apenas meia página das edições de sua revista, ficando assim, no livro, um capítulo em cada página.

Há também 4 páginas em que houve um problema com a definição das imagens. Não sei se as páginas foram escaneadas em baixa resolução ou se foi na gráfica que resolveram diminuir a resolução por conta própria (isso acontece, acredite).



Porém, nada disso deve ser considerado motivo para não ter essa obra em casa.

A leitura foi para mim uma experiência bastante agradável. A falta de balões causa um certo estranhamento no começo, mas logo se acostuma. Gostei da sinergia entre o texto e a imagem; a maneira como ambos trabalham para criar a atmosfera da história, expressar as emoções dos personagens, nos envolver com as situações narradas. De um jeito que talvez não fosse possível se houvessem balões como nos quadrinhos de hoje.

Eu me emocionei quando os personagens se emocionaram, me alegrei quando se alegraram, senti medo quando eles sentiram. E isso não é pouca coisa. Raras vezes uma HQ conseguiu produzir esses sentimentos em mim, e já faz muito tempo que não sentia. Nos últimos anos, só tive uma experiência assim lendo livros.

Não estou dizendo aqui que devemos voltar a fazer quadrinhos como se fazia no final do século 19; a linguagem das HQs mudou, como tem que ser. Mas ler a obra de Agostini, sobretudo o Zé Caipora, com certeza abriu minha cabeça para novas possibilidades narrativas.

O livro pode ser comprado no site da livraria do Senado Federal.

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