Narrar - em quadrinhos - é criar uma sequência de imagens que transmita ao leitor todos os eventos de uma história de maneira clara. Você sabe que se tornou um bom narrador quando os leitores conseguem entender o que se passa numa história mesmo sem ler os textos. Mas o assunto aqui não é exatamente esse, e sim...
Modelos Narrativos
Existem basicamente 3 modelos narrativos principais, dos quais todos os outros derivam. O americano, o japonês, e o francês. A diferença entre um e outro está na relação imagem-texto - o quanto de cada um é exposto em cada quadro e página. Há razões técnicas e históricas para explicar porque cada modelo se desenvolveu de uma forma, mas vou deixar esse tema de lado para manter o foco e não me alongar demais.
- No modelo americano, temos relativamente poucos quadros por página (em torno de 5 ou 6), splash pages (quadros que ocupam a página toda), e grande quantidade de texto (hoje menos, devido à influência dos mangás). A narrativa é mais compacta. O quadro abaixo é uma splashpage de uma revista da DC Comics, onde vemos o personagem Darkseid em destaque, cercado por vários balões de texto. Se fosse um mangá (ou uma HQ da Bonelli), essa cena seria dividida em vários quadros, distribuindo o texto entre eles de modo a tornar a narrativa mais fluida. Uma HQ francesa também dividiria a cena em vários quadros, a diferença é que não teria "quadros silenciosos" - truque típico dos mangás para tornar as cenas mais dramáticas.
- No japonês, há em geral menos quadros ainda por página e pouco texto; a narrativa é bastante visual e fragmentada, e consequentemente há uma quantidade maior de páginas por edição. A página dupla abaixo é do mangá Lobo Solitário, na qual se nota que o clima da cena vai sendo construído quase que totalmente pelo uso de imagens, mais do que pelo texto. Se fosse uma HQ americana, provavelmente se usaria apenas o primeiro quadro, com o clima da cena sendo estabelecido por textos em recordatórios; um quadro mostrando a reação dos personagens; e o último mostrando os pensamentos do personagem. Uma HQ francesa seguiria um esquema parecido, mas possivelmente sem o uso de recordatórios no primeiro quadro e, como essa sequência ficaria mais compacta, a página completa teria um número maior de quadros que seriam ocupados com a ação subsequente (mais conteúdo, portanto).
- Por fim, temos o modelo francês, que de certa forma é uma fusão dos dois anteriores... Combina sequências com uma narrativa mais densa e outras mais fragmentadas. Tem mais quadros por página do que uma HQ americana ou japonesa. Isso pode ser visto na página abaixo, da série francesa XIII, onde há uma pequena sequência mais detalhada (a correria de XIII dentro do banco) e a saída do mesmo, até chegar à rua e pegar um táxi (com cortes maiores entre uma ação e outra). Numa HQ americana, haveria mais um ou dois painéis entre os quadros 5 e 6, e 7 e 8. Se fosse um mangá, haveria um número muito maior de painéis inseridos em toda essa sequência (e, consequentemente, seria desdobrada em mais páginas).
Todos esses modelos têm vantagens e desvantagens. Todos são válidos e acredito que quem começa a fazer quadrinhos deve experimentar os três, e só depois escolher um que se encaixe melhor naquilo que cada um acredita que os quadrinhos sejam.
E às vezes essa escolha depende da quantidade de páginas disponíveis para se contar uma história.
A narrativa dos mangás é muito sedutora. A principal vantagem da narrativa cinematográfica empregada nos mangás (e também nos quadrinhos da Sergio Bonelli Editore, que deixei de fora desta lista por causa do critério que usei para montá-la) é a capacidade de fazer o leitor imergir na história com muita facilidade. Mas para trabalhar nesse formato, é preciso ter à disposição um grande número de páginas - o que nem sempre é possível.
Se o que se busca é transmitir um maior volume de informação numa quantidade menor de páginas, a narrativa americana acaba sendo a melhor escolha.
E a escola franco-belga, creio eu, junta o melhor dos dois mundos.
Algumas coisas para se levar em conta
- Por mais sedutora que a narrativa cinematográfica seja, não posso deixar de pensar que imitar a narrativa do cinema é uma forma de rebaixar os quadrinhos como uma arte menor, que precisa imitar "o primo rico" para ser melhor aceita. Lembro das palavras de um amigo meu: "lugar da narrativa cinematográfica é no cinema". Em vez de tentar reproduzir no papel aquilo que o cinema pode fazer (o que não conseguiremos, por serem linguagens totalmente diferentes), por que não procurarmos fazer aquilo que o cinema não pode? Não só na narrativa, mas também no conteúdo. Cinema tem restrições orçamentárias, quadrinhos não. O único limite dos quadrinhos é a imaginação.
- A imaginação, na narrativa, é absolutamente necessária. Uma história em quadrinhos não mostra tudo que acontece entre um quadro e outro; precisamos da imaginação para preencher essas lacunas e completar a sequência de imagens em nossa mente. Que tal darmos um pouco de trabalho mental para o leitor, sem lhe entregar tudo mastigadinho?
- O desafio da narrativa é saber selecionar exatamente quais serão as cenas-chave necessárias para contar a história sem deixar o leitor confuso. Um quadro a menos pode colocar tudo a perder. Saber quais quadros são necessários e quais não, só vem com a experiência e estudo. Pratique!