sábado, 1 de outubro de 2016

Marinacobra

O processo teve início quando Marina ainda era criança. Mal começou a dominar os movimentos de sua língua e ela já soltava veneno por toda parte, a começar, claro, por sua família: a mãe, que a repreendia, era uma porca; o pai, um bundão; o irmão, um trouxa.
Cresceu um pouco mais, foi para a escola, onde estendeu o veneno para os professores. A de inglês era uma vaca magrela, a de português, uma puta velha. Depois começou a trabalhar, e determinou que o chefe era um corno manso. Mas não mais corno que o vizinho pobretão, que ganhava a vida como jardineiro. Esse, além dos apêndices cranianos e da mansidão, era também um viado vagabundo.
Foi então que aconteceu.
Naquela manhã, Marina acordou com fortes dores no estômago. Achou que eram cólicas menstruais. Depois pensou que "deve ter sido aquela merda de salgadinho que comeu na lanchonete do japonês filho da puta".
As dores se espalharam por todo o corpo. Os braços e as pernas de Marina começaram a encolher com uma rapidez espantosa, até desaparecerem por completo; ao mesmo tempo em que o corpo de Marina ia ficando cada vez mais magro e roliço. Sua pele branca se transformou, dando lugar a um tecido escamoso e frio, tão frio quanto o coração de Marina.
Quando a transformação terminou, ela se olhou no espelho do quarto. Viu seu corpo esguio, os olhos perversos, a linguinha balançando pra fora da boca com um silvo. Não se assustou. Ao contrário, deu um sorriso de satisfação.
- Aaah… Agora sssssim! Esssssa ssouu eeeeuuu!
Marinacobra deu um outro sibilo, fez meia volta, dirigiu-se para a porta de casa, admirada com a agilidade de seu novo corpo. Ia sair, ganhar o mundo. Sentiu suas presas pontiagudas, cheias de veneno, e deliciou-se. Não via a hora de sair e morder uma pessoa, duas, três, quantas ela quisesse.
Nisso, vinha andando pela calçada o vizinho jardineiro, aquele pé de chinelo, com sua bolsa velha, certamente indo trabalhar em algum jardim por aí. Marinacobra decidiu que seria sua primeira vítima. Foi deslizando rapidamente direção dele, sem hesitar.
Ela só não pensou num detalhe: o vizinho era corno manso, viado e vagabundo, mas não era medroso. Não de cobra.
Assim que a viu, o jardineiro puxou um facão imenso de dentro da bolsa encardida. Antes que Marinacobra pudesse xingá-lo de alguma coisa, sua cabeça foi separada de seu corpo. A língua ainda se agitava para fora da boca, que abria e fechava rapidamente, tentando talvez soltar algum veneno em seus últimos espasmos de vida.

Foi o fim de Marinacobra.

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